Em março de 2024, um movimento de profundo significado cultural varreu Minas Gerais. O Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep), de forma unânime, declarou os Sistemas Culinários da Cozinha Mineira como Patrimônio Cultural Imaterial do estado. Este reconhecimento oficializou algo que os mineiros e o resto do Brasil já sabiam no coração (e no estômago): a comida de Minas é mais do que alimento, é identidade, história e afeto.
Mas o que essa declaração formal, repleta de termos técnicos, tem a ver com o prato de estrogonofe, feijoada ou feijão tropeiro servido para um estudante em uma escola estadual? A resposta é: tudo.
O que significa ser Patrimônio Cultural Imaterial?
Quando falamos em patrimônio, é comum pensarmos em igrejas barrocas, estátuas ou centros históricos. Isso é o patrimônio material, o que podemos tocar. O patrimônio imaterial, por outro lado, reside nos saberes, nos modos de fazer, nas celebrações e nas tradições que são passadas de geração em geração.
Ao reconhecer a Cozinha Mineira, o estado não tombou uma receita específica, mas sim todo o ecossistema que a envolve. Isso inclui os ingredientes, como o milho, o feijão, a couve, o porco e o queijo; os utensílios, como o fogão a lenha, a panela de pedra e o tacho de cobre; os modos de fazer, ou seja, o refogar, o cozinhar lentamente, o temperar com sabedoria; e a sociabilidade que se traduz na tradição de se reunir em torno da mesa, a hospitalidade e a partilha.
A merenda escolar como guardiã dos saberes
A pesquisa da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais que coroou o estrogonofe, a feijoada e o feijão tropeiro como pratos favoritos dos alunos é um reflexo direto desse patrimônio. Note que, mesmo um prato de origem internacional como o estrogonofe, ganha um "toque de mineiridade" ao ser servido com feijão, adaptando-se ao paladar local.
Os outros dois campeões, feijoada e tropeiro, são ícones incontestáveis desse sistema culinário. Ao servi-los na merenda, a escola deixa de ser apenas um espaço de ensino formal para se tornar um centro de transmissão cultural.
Pense nisso: para muitas crianças e adolescentes, especialmente em um mundo cada vez mais dominado por alimentos ultraprocessados e fast foo, a escola pode ser o principal ou único local de contato com esses sabores tradicionais. A merenda se transforma em uma aula prática de história e cultura. Cada garfada de feijão tropeiro carrega consigo a história dos bandeirantes e do ciclo do ouro. Cada colher de feijoada conta uma história sobre a formação do Brasil.
Essa iniciativa garante que os "saberes e fazeres" da Cozinha Mineira não fiquem restritos aos livros de história ou aos restaurantes turísticos. Eles são vivenciados diariamente, mantendo a chama da tradição acesa na geração que construirá o futuro do estado.
Valorizando as "Mestras da Merenda": as verdadeiras embaixadoras do patrimônio
O reconhecimento da Cozinha Mineira como patrimônio também joga luz sobre as pessoas que a mantêm viva. Em casa, são as mães e avós. Nas escolas, são as cantineiras ou auxiliares de serviços da educação básica (ASBs). Elas são as detentoras de um conhecimento precioso: o "temperinho" que transforma ingredientes simples em uma refeição memorável.
Ao valorizar essas profissionais, com programas como o reality show "Mestres da Merenda", o estado reconhece que elas não são meras operadoras de uma cozinha industrial, mas sim educadoras e embaixadoras de um patrimônio cultural. Elas garantem que a técnica do refogado perfeito, o ponto certo do feijão e o carinho no preparo – elementos centrais do "modo de fazer" mineiro – sejam aplicados em larga escala, alimentando o corpo e a alma de milhões de estudantes.
A conexão com a terra pela agricultura familiar sustentável
Outro pilar do sistema culinário mineiro é a sua forte ligação com o “terroir”, ou seja, com os produtos da terra. A política de comprar parte dos insumos da merenda diretamente da agricultura familiar, em parceria com a Emater-MG, fecha este ciclo de forma brilhante.
Essa prática não apenas fortalece a economia local e garante alimentos mais frescos, mas também reforça a identidade cultural. O feijão, o milho, a couve e as carnes que chegam às escolas vêm da mesma terra que deu origem a essa culinária. Os alunos consomem um prato cuja história começa no campo, perto de suas casas, e não em uma fábrica distante.
Um prato cheio de futuro
A iniciativa da merenda escolar em Minas Gerais é um exemplo magistral de como uma política pública pode ser multifacetada e gerar impactos profundos. Ela vai muito além de simplesmente cumprir a obrigação de alimentar os alunos.
Ao ouvir as preferências dos estudantes e alinhá-las com os pratos mais emblemáticos de sua cultura, o estado conseguiu aumentar a aceitação e a eficácia do programa de alimentação; promover a saúde com comida de verdade, nutritiva e saborosa; atuar como agente de salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Cozinha Mineira; valorizar as profissionais das cantinas escolares, reconhecendo-as como mestras de um saber tradicional; e fortalecer a economia local pela agricultura familiar.
A merenda escolar de Minas Gerais prova que é possível, e desejável, unir educação, nutrição e cultura em um mesmo prato. É a prova de que o futuro de um povo é construído não apenas com livros e tecnologia, mas também com o sabor, a memória e o afeto que só a comida de casa – ou, neste caso, a da escola – pode oferecer.